terça-feira, 24 de setembro de 2024

 Zé da Bussu, o rei da bagaça

Por Emanoel Barreto

O jornalista Alexis Gurgel, que me ensinou as primeiras letras do jornalismo, era editor de polícia no saudoso Diário de Natal em 1974. Eu tinha poucas semanas como repórter quando dele ouvi a seguinte ordem: “Barreto, vá até o Canto do Mangue e entrevista Zé da Bussu.” Eu indaguei a respeito de quem diabo era Zé da Bussu e ele me disse que o tipo era um desordeiro conhecido nas Rocas. A minha missão seria encontrar o sujeito e fazer uma espécie de levantamento de suas, digamos, atividades.

 A kombi do jornal deixou-me no Canto do Mangue às duas da tarde e lá fui eu, de banca em banca. Cada peixeiro tentando literalmente vender o seu peixe. Parei na banca de dona Mãezinha, uma vendedora de petiscos marinhos capazes de encantar até mesmo Netuno, e perguntei: “A senhora sabe onde encontro Zé da Bussu?”

A resposta foi: “Sei, é aquele ali” e apontou um sujeito que mais parecia um muro, desses feitos de pedra. Eu já me aproximava dele quando lembrei: Alexis não mandara um fotógrafo comigo. O jeito era fazer a matéria e depois o fotógrafo que se virasse, para encontrar o cara.

“Seu Zé?”

“Sim.”

“Posso falar como senhor?”

Ele disse que tudo bem e eu me sentei com ele à mesa onde bebia uma cachaça de péssima qualidade: “Toma uma?” Respondi que não e lhe expliquei que era do Diário e queria saber de sua vida, seus feitos na desordem, suas atividades de risca-faca e tudo o mais. Eu anotava tudo, até que senti que ele não tinha mais o que dizer: prisões, desordens, enfrentamentos com a polícia, um sujeito que ele quase matou, fugas de delegacias e, agora, a aposentadoria a ser vivida nas Rocas, rondando as mulheres e a cachaça do Canto do Mangue.

Estranhei quando ele afirmou que iria parar: “Parar por quê?” Muito simples, explicou: esperava que aparecesse um escritor para fazer um livro sobre sua vida. Ele acreditava que ganharia um bom dinheiro contando a sua história e garantiu sinceramente acreditar que o tal escritor seria eu. Primeiro levantando a peteca com a matéria no Diário, depois com o livro que eu, acreditava, iria escrever.

Expliquei que aquela matéria era apenas um registro, a publicação de minhas anotações e ponto final. Deveria sair no próximo domingo – estávamos numa segunda-feira. De nada adiantou: na verdade aumentou o delírio de Bussu, que já se via em cartaz em todos os cinemas do Brasil, ou seja: além do livro um filme... Sonhava: “Já pensou o título? Acho que deve ser Zé da Bussu, o rei da bagaça! Não é mesmo? Não é mesmo?”

Disse isso, levantou-se e garantiu: “Vou fazer a maior desordem dessa zona, que é para a coisa ficar completa.” Pensei em ver dali a minutos um escarcéu de quebrar o cano, mas nada aconteceu. Ele olhou firme para mim e disse estar pensando como e quando iria botar pra quebrar.

A kombi do jornal chegou, eu voltei à redação e contei a Alexis a respeito daquele sujeito estranho. Para mim, salientei, ele não tinha nada de desordeiro; havia emendado umas histórias esquisitas e, pela forma como divagava, estava mais para doido que para bandido ou algo assim. Alexis concordou e disse para deixar a matéria para lá. Com ela, disse, pretendia iniciar uma série de histórias de marginais, gente perdida, seu sofrimento, suas desgraças, dores e desesperos. E lamentou: “Vai dar não, Barreto. Vamo saber sobre os bebos e a turma de sempre, que quase é morador das delegacias.”

Anos depois encontrei Zé da Bussu. Estava pedindo esmolas pelo centro da cidade, envelhecido e cabisbaixo. Eu o observei detidamente e lamentei seus pobres sonhos de ser o maior bandalho do mundo... Seu livro havia virado um papel velho que descartei num cesto da redação em 1974 e, pior, ele jamais ficou conhecido como Zé da Bussu, o rei da bagaça.

 

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