"Cidadões,
vocês me ajudem..."
Por Emanoel
Barreto
O cego pegou de sua sanfona e começou um cantar tão triste. O rouco
instrumento, tão velho e tão puído parecia sentir tanto o cantor e sua lástima
que guinchava surrados sons como um alarma bruto e sofrido. A alma da sanfona,
enferrujada em tantas latumias grunhia alto o que se passava no âmago de sua
vida de instrumento humilde e troncho.
O cego, óculos escuros, como convém a todo cego, parecia ver dentro de si a escuridão que os óculos lhe impingiam. Mas não já tinha ele a sua própria
escuridão? Por que os óculos? Para escurecer dos outros que era cego?
É que os cegos - por algum estranho
motivo - procuram esconder com escuridão a escuridão em que
tanto já vivem. São coisas, coisas humanas e bem nossas.
Eu observava esse cego quase todos os dias, enquanto esperava o ônibus
na rodoviária velha, na Ribeira, parte antiga de Natal. Muitas vezes fiz isso
de propósito: deixava o carro em casa para estar em contato com as coisas do
povo, os pequenos dramas do cotidiano, o espetáculo de que eu participava
quando corria para a portinha apertada do coletivo, na tentativa de não perder
a vez. Essas minúsculas tragédias sempre repicam em minhas lembranças.
Pois bem: o cego parou sua canção e cessou o urro da sanfona e disse em
voz alta: "Cidadões, vocês me ajudem. Quem puder que me ajude.
Perdi a vista, cidadões, e hoje me vejo nessas condições. Se os cidadões
puderem... que me ajudem..."
Assisti a essa cena muitas e muitas vezes. E muitos cidadões, condoídos
e emocionados, reunidos na minúscula solenidade da esmola contribuíam
com o óbolo precioso e pobre ao pobre que lhes estendia a mão.
Hoje lembrei-me do cego. Que como pobre ficava ali a cumprir a sina dos
pobres que é o ato displicente de ser esquecidos. E às vezes - só às vezes
-, virar lembrança passageira como passageiros éramos nós na
rodoviária: o cego, eu e os todos que estavam por lá. De alguma maneira cegos
todos nós.
Passamos por lá, o cego e eu. Passamos na cegueira da vida o cego e eu.
Assim, chego a uma conclusão: "Cidadões, eu também sou cego. Minha
rodoviária é este espaço, minha sanfona são essas letras. Mas, escuto algo;
sim, sim, eu ouço música: será que você não está também tocando uma sanfona na
sua rodoviária? Parece que sim, parece que sim..."
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