Fantasmas no Beco da Quarentena
Por Emanoel Barreto
Não lembro bem o ano, mas foi na década de 1980 que resolvi participar de um concurso de reportagens sobre a Ribeira, o velho bairro boêmio de Natal. O concurso era promovido pelo Setrans, o Sindicato dos Transportes Urbanos de Passageiros.
Eu era editor de Cidades do Diário de Natal. Arrastado pela saudade dos tempos de reportagem resolvi que aquela era uma boa oportunidade de reviver meus tempos de repórter. Especialmente os tempos de repórter policial, em 1974. Afinal fora ali, na Ribeira, que fizera as minhas primeiras matérias entrevistando delegados, agentes de polícia e bandidos, sendo estes "homens da pior espécie", como se dizia.
A Ribeira, de alguma forma, remonta à minha memória como uma senda no tempo, levando-me a ambientes fumageiros, mesas de bar barra-pesada, meia-luz, bas-fond; ambientes que a gente, na reportagem policial, tem de enfrentar – ou melhor, viver.
Pois bem: resolvi fazer a reportagem exatamente à noite, quando a Ribeira é mais Ribeira. Acompanhou-me Moraes Neto, fotógrafo pé-quente. Isso basta para defini-lo. Marcamos para iniciar os trabalhos nas imediações do Bar das Bandeiras. Ali, expostas nas paredes altas, bandeiras de muitos países deixadas como lembrança, marcos de aventuras dos navegantes; presentes de marinheiros de todo o mundo elas justificavam o nome do bar.
Eu e Morais saímos do Diário às oito da noite e mergulhamos em direção à Ribeira, que em tempos outros, lá pelos anos 1960, era chamada de Cidade Baixa por oposição ao centro, a Cidade Alta. Cada um foi no seu carro. Estacionamos perto do bar, que fica na zona portuária. Descemos e ficamos observando o ambiente: marinheiros filipinos acocorados fumavam, diziam coisas ininteligíveis e nos olhavam com justificada estranheza: um cara com um bloco de papel nas mãos e outro com uma tremenda Nikon ao peito. Creio que se sentiam, digamos assim, investigados.
Deixamos os filipinos de lado e eu disse a Morais: "Vamos". O vamos queria dizer vamos ao bar. E fomos. Não éramos exatamente desconhecidos por lá. Éramos na verdade muito bem conhecidos. E recebidos. É que turmas de jornalistas, empresários, boêmios, poetas, pintores, escritores, artistas frequentavam o Bandeiras especialmente nas tardes de sábado. Mas, à noite, a coisa era diferente: ao escurecer a fauna era bem outra: putas, marinheiros, estivadores, pescadores... Era, aí sim, a Ribeira; representada pela sua mais autêntica realidade. A alegria bruta de sua essência popular, o vulgo reluzindo, solenemente exposto.
E foi isso, essa mudança, o que nos recebeu. Percebi que as coisas haviam literalmente mudado do dia para a noite quando alguém, uma voz de mulher, a dona do bar, avisou aos tipos ali presentes: "Lá vem o triste". O "triste" era eu. Sinceramente, não entendi aquelas palavras até que me aproximei. Ainda abri um sorriso, mas, grosseira, ela disse: ‘O que vocês estão fazendo aqui? Não podem fotografar. Aqui estão mulheres, até mesmo mulheres casadas que vêm fazer a vida. Os maridos não sabem. Pode dar problema, entende?’”
Senti o peso da situação. Ela estava agressiva, completamente ao contrário de quando nos recebia nas tardes de sábado. Em tais momentos éramos gente falando de política, arte, cultura, pápápá e lero-lero. Ninguém era de briga, confusão ou barraco.
Mas, naquele momento, não: um estivador empertigou-se, uma mulher fuzilou-me com olhar de onça, um bêbado levantou-se e encostou-se no balcão, outro mostrou-se ameaçador. O zum-zum-zum se espalhava pelo enorme salão. Todos estavam literalmente putos conosco.
Era como se milhares de olhos, olhos enraivecidos, estivessem a nos fitar. Então, percebi: éramos uma ameaça, uma ameaça à barulhenta tranquilidade daquele ambiente onde reinavam as leis e as ordens de Baco, a feroz felicidade do beber cachaça à larga, pegar uma rapariga pela cintura, gritar rudemente pedindo "mais uma", e se esperava a próxima cerveja gelada.
Expliquei que não havíamos fotografado nada nem ninguém. A gente estava ali somente para sentir a noite da Ribeira e eu escrever minha reportagem sem citar o nome de qualquer pessoa. E nenhuma das damas seria fotografada. A dona do bar acalmou-se e eu, aproveitando a deixa, disse a Moraes: "Vamo simbora daqui! Agora!"
Saímos. E ouvi quando ela disse: "Ainda bem, ele saiu." Vale dizer: eu, o "triste", tinha tirado o time.
Voltemos à Ribeira. Moraes e eu, dois perdidos na noite, saímos andando. Fomos até uma delegacia. Falei com o agente responsável – o delegado não estava – e pedi para entrevistar alguns presos. O policial foi legal e deixou. Um forte cheiro de sujeira ampliava a sensação de coisa marginal, ambiente de rejeitados, decadência, asco.
Suportei o odor que já conhecia de outros tempos, quando me iniciativa no jornalismo e encaminhei-me à carceragem. Se você nunca entrou numa delegacia não tem ideia de como é: gente dormindo no chão frio e sujo, gente assujeitada, fedida, infecta. É barra. Era como nos velhos tempos de repórter policial. Nada havia mudado.
Sentei-me no chão perto da grade de um dos cárceres e puxei conversa com um sujeito. Ele estava só de calção – prisioneiros homens ficam só de calção ou cueca – é para impedir que alguém tente se suicidar com alguma peça de roupa. Pelo menos era o procedimento em 74 nas delegacias. Hoje, não sei.
Voltando: sentado, tentei falar com o cara que estava preso. Disse que estava fazendo uma reportagem sobre a Ribeira e blábláblá.
E então enfrentei outra dificuldade: por causa do meu bigode – e isso sempre acontecia quando eu falava com bandidos ou outros elementos presos – o sujeito disse, na lata: “Você tem cara de ser cana. Cara de canoa. Não vou falar. Esse bigode mostra que você é da polícia. Quer me afundar ainda mais. É rabo de foguete. Muito maior do que a merda em que já tô metido.”
Parei. Pensei depressa e expliquei que não era nada daquilo, que eu não era um canoa, que não tava numa de lascar ele ainda mais. O indivíduo terminou aceitando meu papo e falou que estava preso depois de dar uma surra na mulher e tinha sido capturado. Uma história bem típica do povão, coisa cotidiana do noticiário policial.
Naquele instante dei um salto no tempo e voltei a 1974, quando entrei no jornalismo, ombro a ombro com Pepe dos Santos e Alexis Gurgel, dois monstros do noticiário de polícia em Natal. Duas grandes figuras que já se foram: irrepetíveis e insuperáveis. Segurei a onda com o desordeiro preso, falei com outros sujeitos e saí. Nem lembro se Moraes fotografou. Só sei que deu para sentir a barra do quanto sofre o pobre, o sujeito comum, suas necessidades, sua lamentável e sórdida existência.
Saindo da delegacia começamos a andar pelo bairro. As horas se passavam, e eu e Moraes percorrendo as ruas escuras, os bares escusos, as casas de luz vermelha, o silêncio das ruas desertas, a semiobscuridade daquele bairro de cachaça e bebedeira, tão humano e tão verdadeiro, perigoso e bêbado.
Hoje vejo que foi coisa de louco. Moraes com uma câmera caríssima. Eu com minha vontade de repórter, eu com minha curiosidade humana. Nós com nossas vidas expostas a agressões, perigos, assaltos. Nós, com uma espécie de ingenuidade tão jornalística e tão poética, nos colocando à disposição de malandros e marginais, somente para fazer uma boa matéria. Nossas famílias em casa talvez temendo pelo pior... Por que éramos tão loucos? Ainda hoje não sei a resposta, mesmo depois de tantos anos...
Mas, continuemos: caminhando, chegamos às imediações do Beco da Quarentena que já foi um sórdido ambiente de prostituição, da mais baixa raparigagem já praticada em Natal. Ali era o seguinte: cubículos, lado a lado, numa calçada e na notra, eram os apartamentos onde as mulheres recebiam seus, vejamos, clientes. O sujeito entrava e a porta era fechada atrás de si.
Paramos. Moraes começou a estourar flashes no casario que ladeia o Beco. Então, fiz algo que até hoje me arrepia e me interroga: entrei no beco. Por que fiz isso? Não sei. Ali não havia nada de valor jornalístico. Só escuridão. Densa e temível. Mas só sei que empurrei o pé e meti-me no beco.
Caminhei alguns metros com minhas botas ressoando no silêncio escuro da rua. De repente ouço sons. Zoada de luta. Eram barulhos surdos, como se muitos indivíduos trocassem socos.
Gente se esmurrando no tórax. Bum-bum-bum! Tum-tum-tum! Era como se alguém recebesse um murro e fosse atirado contra uma porta. Uma intensa pancadaria como se fosse dentro dos quartinhos das putas. As batidas nas portas também eram medonhas. Era como se o suposto esmurrado fosse atirado brutalmente contra a madeira. Fui dominado por um terror súbito e inexplicável, algo tão terrível como jamais sentira, como se uma força maligna estivesse se acercando de mim. O terror aumentava à medida que me aprofundada no beco. Os cabelos eriçados e eu andando como que em câmera lenta.
O que sentia era como se algo, alguma entidade de descomunal e de intenso poder estivesse naquele lugar e me deixasse completamente gelado.
Saí do beco e, ato contínuo, entrei de novo. Ouvi os mesmos barulhos e tive e mesma e medonha sensação. Devo dizer: foi demolidor, aterrorizante. Repeti a experiência umas duas vezes, com o mesmo e brutal efeito. Afinal, desisti. Não dava para continuar vivendo aquilo.
Algo, porém, chamou-me a atenção. Fora do beco desaparecia completamente o terror. Eu ficava absolutamente normal, tranquilo. Chamei Moraes, não lhe contei nada e andamos a esmo mais um tempo. Afinal, coisa de duas da manhã, demos a missão por encerrada. Fomos para nossos carros.
Nos despedimos com um abraço. Semanas depois a comissão julgadora do prêmio atribuiu-me o primeiro lugar. Valera a pena todo o esforço, o terror, a escuridão.
Muitos anos depois passei pelo Beco da Quarentena. Era dia e entrei. Percorri-o de ponta a ponta. As portas haviam sido substituídas por tijolos. Era uma manhã de sol e o beco até parecia sorrir. Jamais compreendi tudo o que ali vivenciei.
E hoje, batucando este texto me pergunto: valeu a pena? E me respondo: valeu. Mas espero nunca mais repetir.
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