A louca falava só, e dizia:
“Helenita, Helenita, calaboca Helenita...”
Havia na rodoviária velha da Ribeira uma pobre
louca que falava sozinha. Falava com seres invisíveis, pessoas que habitavam
seu mundo, seu único, inacessível e paralelo mundo. Eu a observava, mas nunca
consegui saber seu nome, enquanto, à noite, às vezes altas horas da noite,
depois do expediente no jornal, esperava o ônibus para ir para casa.
Sozinha, sentada em um banco, cercada de pacotes mal-arrumados, falava, falava
muito, gesticulava, discutia, irritava-se, reclamava, pedia, e, creio, era até
atendida pelos seus amigos invisíveis. Sim, pois, de vez em quando, se abria em
sorrisos da mais esmerada simplicidade. Certamente agradecia o que havia
pedido.
E eu ali, lendo algum jornal, mas com um olho naquela cena. A estranha, inesperada
personagem, em pleno devaneio de vida, esquecida ao mundo, entretida em si
mesma, pobre imagem de uma vida aparentemente em vão. Eu disse aparentemente em
vão. Quem sabe...
E vinha o frio da noite, aquela brisa da Ribeira, brisa fugitiva do Potengi,
trazendo em seu corpo de nada o cheiro do mar, mar e vida, maresia,
mar-Ribeira. Passavam vultos escusos, caminheiros da noite, uma ou outra
radiopatrulha, vagabundos sonolentos, bêbados equilibristas. E eu um pouco de
tudo isso.
E ela falando, sozinha. Falando, falando,
coitada: feliz. Calada para o mundo, alerta para si. E uma de suas amigas mais
amigas, íntima, conciliatória e cúmplice era uma certa Helenita.
Sim, Helenita. Helenita, a invisível, a
impalpável, mas, viva; viva sim, para a louca, presente em sua presença.
E ela dizia: “Se acalma, Helenita. Deixa de
coisa, mulher. Deixa de dizer besteira... Helenitaaaaaa....” E, gesto brusco de
mão morena, dava um tapão no ombro intangível da mulher. E ria, ria, gargalhava
quando a outra parecia revidar, ali, na penumbra encardida da rodoviária velha.
Ali, naquele ponto de encontro das gentes noturnas.
Depois de muito tempo de espera lá vinha o
ônibus que eu esperava: pesadão, cansado, velho, luzes fracas, salão de luz
mortiça, passageiros tombando de sono, cabeças balouçantes, corpos vivos
pendentes de cansaço. Eu entrava no sacolejo do veículo lerdo e lá me ia,
deixando para trás Helenita e a louca.
Às vezes meu instinto de repórter me chama a
voltar à Ribeira para ver se ainda as encontro: Helenita e a louca. Helenita eu
já conheço. Sei que é estabanada, brincalhona, faceira, gosta de falar besteira
não é mesmo?
Mas, se Helenita eu já conheço, nada soube da louca. E hoje, fosse possível voltar, gostaria de saber o que ela teria a dizer sobre o mundo de agora, muito mais estranho, ameaçador, cheio de ódio e feras
humanas. Suspeito, sim, suspeito, que ela ia preferir o mundo de Helenita...
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